Santa Casa tem cerca de 800 trabalhadores; relatos são de contas em atraso e falta de comida em casa
Rodrigo Bueno chegou a ficar sem dinheiro para comprar leite para o filho de sete meses
DA REDAÇÃO
Prestes a completarem o sétimo mês sem salário, os funcionários da Santa Casa de Misercórdia de Cuiabá sofrem diretamente os efeitos da grave crise financeira que veio à tona nos últimos meses, assim como os pacientes que deixaram de ter o atendimento gratuito oferecido pelo local.
O hospital filantrópico - que tem 202 anos - está de portas fechadas desde o dia 11 de março, por falta de recursos. Recentemente, a direção do local finalizou um relatório apontando que a dívida da unidade já chega a R$ 118 milhões - entre fornecedores, funcionários e instituições bancária.
O porteiro Rodrigo Robson Bueno e o funcionário do setor de farmácia do hospital, André Luís Devaux, ambos de 36 anos, fazem parte do retrato de desamparo que atinge cerca de 800 trabalhadores.
Água, energia elétrica, TV a cabo e até mesmo a comida servida à mesa - confortos e hábitos rotineiros para uma parte da sociedade - foram afetados pela falta de salário. Sem salários, eles relatam as dificuldades vividas nos últimos dias.
Rodrigo, por exemplo, perdeu o "crédito" que tinha em dois mercados próximos a casa dele, no Bairro Jardim Jacarandá, em Várzea Grande, região metropolitana de Cuiabá. Fato que piorou ainda mais a frequência com que a família consegue comprar mantimentos.
"Tinha conta em um mercado próximo de casa, mas fiquei devendo muito e perdi o crédito. Sempre comprava, recebia e pagava, mas agora com essa situação não consigo mais. É uma situação humilhante", contou.

Chegamos a dividir um ovo quando as coisas ficaram ruins. Outras vezes comemos arroz, feijão e hambúrguer. Estamos sendo obrigados a nos virarmos com o que temos
O porteiro é casado e tem seis filhos, com idades entre 11 meses e 7 anos. Por conta da crise enfrentada pela família, a mais velha das crianças, fruto de um antigo relacionamento da mulher dele, precisou se mudar para a casa dos avós.
A família de Rodrigo chegou ao extremo de dividir um ovo para que ninguém ficasse sem se alimentar. Também é comum que falte o gás de cozinha, hoje custando cerca de R$ 100.
"Chegamos a dividir um ovo quando as coisas ficaram ruins. Outras vezes comemos arroz, feijão e hambúrguer. Estamos sendo obrigados a nos virarmos com o que temos", desabafou o porteiro.
Além das dificuldades financeiras, Rodrigo sofreu um acidente de moto quando saía da Santa Casa em abril de 2018. Na ocasião, uma motorista furou o sinal e colidiu com a motocicleta dele, acarretando em 17 fraturas na perna direita dele.
"Agora fui enquadrado como Pessoa com Deficiência (PCD) por causa desse acidente. Quebrei a perna em 17 pedaços, foram fraturas na tíbia, joelho e patela. Tive uma artrose irreversível e minha perna ficou dois centímetros menor que a outra. Mas, pelo menos tenho ela para andar ainda", disse o porteiro.
O último mês em que algum dinheiro foi depositado na conta dos funcionários da Santa Casa foi em novembro de 2018, segundo o porteiro. Como estava afastado por conta do acidente, Rodrigo contou que recebeu apenas uma parte do pagamento referente ao mês de outubro.
A partir daquele momento, as dificuldades enfrentadas pela família ficariam cada vez mais frequentes.
O medo que tira a tranquilidade dos funcionários é de que esses salários atrasados nunca sejam pagos.
"Nós estamos com muito medo, minha esposa e eu já choramos muito. Eles querem declarar falência de toda maneira. Nosso medo é que eles façam isso e contratem novos funcionários para a Santa Casa. Vamos ter que ir à Justiça e, provavelmente, só meus netos terão esse dinheiro", desabafou Rodrigo.
A família de Rodrigo vive em um lote do "Minha Casa, Minha Vida". Eles precisam pagar cerca de R$ 50 para continuar morando no local. As parcelas, porém, já estão atrasadas há cinco meses.

Tenho que pegar água no vizinho, porque a da minha casa já está cortada há três meses. Estamos há muito tempo enfrentando a mesma situação, sem ter certeza de nada
A angústia de perder o lugar que tem para morar por conta dos atrasos salariais da Santa Casa também contribuem para o olhar cansado que o porteiro estampa no rosto.
"A casa está no nome da minha esposa, mas não conseguimos pagar a mensalidade há cinco meses. Temos medo de ficar sem ter onde morar. Não sabemos como essa situação vai acabar. Mas simplesmente não temos dinheiro para arcar com essa dívida", disse Rodrigo.
Pegando água na casa do vizinho
O fornecimento de água da casa do porteiro foi interrompido há aproximadamente três meses pela falta de pagamento. A família só não ficou completamente sem água porque um vizinho tem cedido parte da dele para Rodrigo.
"Tenho que pegar água no vizinho, porque a da minha casa já está cortada há três meses. Estamos há muito tempo enfrentando a mesma situação, sem ter certeza de nada. A Santa Casa não deu nenhuma previsão de pagamento desses salários atrasados", contou.
Apesar da pouca idade, os filhos de Rodrigo já são obrigados a entender a realidade da família. Em uma das conversas com a filha mais velha pelo telefone, a mãe precisou dizer que não teria dinheiro para comprar ovos de páscoa neste ano.
"Ela [filha mais velha da mulher] foi morar com a avó dela há um mês e pegou uma das fases mais difíceis aqui em casa. Eles [os seis filhos] sabem de tudo, ficam a par de tudo que está acontecendo e tentam ajudar na casa", disse.
Os filhos do porteiro fizeram cartinhas para o "coelho da Páscoa" na esperança de receberem ovos de chocolate nesse domingo (20), já que sabem que os pais não terão condições financeiras.
Empréstimo no banco
Na casa de André Luís Devaux, a comemoração do domingo de Páscoa também não é uma das prioridades da família, assim como o último Natal e virada de ano também não foram os melhores.
A mulher dele também é funcionária da Santa Casa, motivo pelo qual ambos viram a renda da casa deles desaparecer ainda mais rápido.
Com uma filha de um ano e oito meses, o casal chegou a ficar uma semana com a energia elétrica da casa cortada, pois não tinha dinheiro para pagas as contas de luz.
A solução veio através de um empréstimo feito pela sogra de André, que foi usado para pagar algumas contas e comprar alimentos para a família. Além disso, o casal também precisava pagar as parcelas da casa e do carro, dívidas que também foram assumidas por familiares.
"Graças a Deus tenho uma família muito grande. Meu pai e minha sogra assumiram todas as contas da minha casa. Minha sogra fez um empréstimo e usou o dinheiro exclusivamento para nos ajudar. Estou me sentindo humilhado, mas outros funcionários não tem a mesma sorte que eu tenho", avaliou André.
Na casa de Rodrigo, o filho mais novo, de um ano e sete meses, chegou a ficar dois dias tomando apenas chá, porque ele e a mulher, que não estava conseguindo amamentar, não tinham dinheiro para comprar leite.
Graças a uma doação de quatro latas de leite em pó, que foram utilizadas com parcimônia extrema pelo casal, o bebê conseguiu voltar a se alimentar novamente.
André contou que a alimentação da filha de um ano e oitro meses também precisou ser adaptada por conta da falta de dinheiro.
"Uma lata de leite em pó custa quase R$ 20. Decidimos tentar introduzir o leite longa vida, que é mais barato. Torcemos muito para que ela conseguisse se adaptar bem ao leite", contou o funcionário da farmácia do hospital.
Vales de R$ 100
André, que também faz parte da comissão de servidores da Santa Casa, contou que vez ou outra são liberados vales no valor de R$ 100. Rodrigo relatou que na última semana recebeu um dos adiantamentos de R$ 30. Os superiores disseram que era para colocar gasolina no carro para ir trabalhar.
O porteiro, que não tira o veículo da garagem há dias, contou que optou começar a utilizar o transporte público, porém às vezes faltam até os R$ 3,85 necessários para pagar uma passagem.
"Nem sei mais se ele funciona, porque faz tanto tempo que não uso. Já deve estar com a 'bateria arriada'. Não tenho dinheiro para gasolina, não tenho o suficiente nem para pegar um ônibus se precisar ir a algum lugar neste momento", contou.
Trabalhando no hospital filantrópico há 18 anos, André contou que nunca imaginou que seria obrigado a enfrentar esse tipo de problema. Ele também relatou que os funcionários da Santa Casa travam lutas extremas há sete meses, como serem ameaçados por agiotas ou presos por falta de pagamento da pensão alimentícia.
Além disso, boa parte dos trabalhadores do hospital também enfrentam quadros depressivos, como o caso de uma das funcionárias que teve o celular tirado da mão dela a força pelo atual presidente da Santa Casa, Luíz Saboia, durante uma discussão entre ele e o vereador Toninho de Souza (PSD).
O vereador preside a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que pede a investigação de unidade filantrópicas, entre elas a Santa Casa. Na manhã de terça-feira (16), o parlamentar e o atual presidente protagonizaram uma discussão no hospital.
Toninho de Souza e outros políticos recusaram a se reunir com Saboia após o mesmo chegar ao local em companhia do ex-presidente Antônio Preza, a quem o vereador culpa pelo caos financeiro da Santa Casa.
No vídeo, que circulou nas redes sociais, é possível ver o momento em que Saboia discute com funcionários do local e chega a empurra uma das pessoas que filmva o ocorrido.
"Ele tomou o celular dessa colega e ela é uma pessoa depressiva, tem enfrentado uma fase muito difícil. Essa foi a gota d'água para ela, que está bastante debilitada emocionalmente. Tudo é muito aterrorizante", disse André.
Doações de cestas básicas
Sensibilizados pela situação dos quase 800 funcionários da Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá que estão com os salários atrasados há sete meses, um grupo de artistas, funcionários públicos e empresários decidiu se reunir para tomar uma atitude com relação aos trabalhadores do hospital.
"Somos pessoas de várias áreas de trabalho e atuação que acompanham o problema da Santa Casa pela mídia, o que nos tocou foi a situação em que se encontram os funcionários do hospital. Eles tem muitas necessidades, são sete meses sem receber", explicou uma das organizadoras da ação, Sandra Barros.
Ela contou que assistia à TV Assembleia quando se deparou com uma sessão, que tinha como tema a atual crise o hospital filantrópico. Chocada com o que havia acabado de ver, Sandra recebeu o convite de uma amiga através de um grupo de WhatsApp. No texto, ela sugeriu que todos agissem em prol dos funcionários.
"Começamos a pedir cestas básicas para a população. Acho que a alimentação é uma demanda urgente também para essas famílias. Ainda não conseguimos o suficiente para as 800, mas já conseguimos ajudar muitas delas. Somos voluntários independentes e não temos vínculo polícos, religiosos ou administrativos com a Santa Casa", contou Sandra.
Em março, o grupo voluntário se reuniu com os funcionários do hospital para entenderem a gravidade da situação. De acordo com Sandra, os relatos foram surpreendentes.
Na época, os responsáveis pela ação gravaram um vídeo pedindo doações de cestas básicas para os funcionários da Santa Casa.
Veja o vídeo abaixo:
As doações podem ser entregues diretamente no Laboratório de Anatomia Patológica, ao lado da Santa Casa, sob os cuidados de Eddy.
Além disso também é possíve, entrar em contato com os organizadores da ação por telefone: 99962-8682 (Eddy), 98466-5414 (Sandra) ou 99207-5320 (Celma Malheiros).
Protesto e intervenção
Na quinta-feira (18), alguns funcionários chegaram a levar cartazes para a entrada da Prefeitura de Cuiabá. Alguns pediam por uma intervenção do órgão na Santa Casa.
Para André, apenas com uma intervenção da Prefeitura de Cuiabá a situação será contida. Durante uma reunião entre a Prefeitura e os funcionários da Santa Casa, André contou que eles teriam sido informados que o dinheiro seria liberado em 72h caso houvesse uma intervenção.
"Essa é a única alternativa, todos os funcionários da Santa Casa, tirando os cargos de diretoria, querem a intervenção do prefeito [Emanuel Pinheiro], porque foi a única alternativa em que disseram que sairia dinheiro. Não entendo por qual motivo o Emanuel Pinheiro não toma uma decisão. Isso está muito estranho, porque ele não assume a Santa Casa?", questionou o funcionário.
Como é membro da comissão de servidores, André tenta acompanhar as negociações e reuniões da diretoria. Porém, o psicológico abalado, muitas vezes faz com que faltem forças para continuar lutando pelo pagamento dos salários atrasados.
"Acompanho todas as reuniões, mas tenho ficado perturbado. Nós da comissão não conseguimos mais entender nada, cada um fala uma coisa, não temos mais entendimento de nada. A todo momento esse tema fica 'martelando' na minha cabeça. Não recemos 13º salário, não tivemos ceia de Natal, virada de ano e agora não teremos Páscoa", desabafou André.
Ele contou se apoiar na filha de um ano e sete meses para conseguir tentar seguir a vida.
"Tenho minha bebê em casa. É o único momento de alegria que minha esposa e eu temos", disse.
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