Antônio Henrique Pedrosa Neto
José Gonçalves Franco Júnior
Reprodução Assistida
A Igreja Católica e a reprodução assistida

Sem dúvida, dentre os assuntos que mais provocam debates situam-se aqueles referentes à reprodução humana, em vista do forte componente religioso, moral e ético que envolve a questão. O dogmatismo da Igreja Católica sobre o tema, desde o início da era cristã, dando uma conotação divina à reprodução humana, tornou, durante quase dois mil anos, essa discussão proibida. Ou, pelo menos, restrita a grupos de pensadores e filósofos que ousaram desafiar os dogmas estabelecidos. No Novo Testamento, no Evangelho segundo S. João, lê-se: "Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus" _ por si só esta asserção impõe um silêncio sobre a questão da reprodução e não admite discussão.

A influência de diversas religiões, principalmente da católica, impedindo a livre manifestação do pensamento sobre o assunto, levou à aceitação de que a reprodução humana era uma manifestação exclusiva da vontade de Deus e, portanto, seria inadmissível sua discussão pelo homem. A interferência humana no processo reprodutivo constituía uma agressão à vontade de Deus. Esse dogma perdurou durante séculos, mantendo a humanidade sob a doutrina de uma religião que impunha seus conceitos a todos, religiosos ou não, em uma atitude claramente coercitiva que não reconhecia a diversidade do pensamento humano.

Um dia, a espécie humana decifrou os mistérios da reprodução. Conheceu o poder de trazer uma nova vida ao mundo, não mais submetendo-se ao simples acaso da natureza. Corrigindo uma falha desta, permitiu que o homem e a mulher pudessem desenvolver o privilégio da reprodução. Devolveu ao homem e a mulher o direito à descendência. Devolveu à mulher sua função biológica de conceber uma nova vida. Não quis o homem tornar-se Criador. As sementes da vida são Sua criação. O homem apenas juntou as sementes para que dessem origem a um novo ser. Sob essa lógica, não se pode falar de desvios religiosos, morais ou éticos.

A respeito da inseminação artificial, Pio XII manifestou-se contrariamente, pois o esperma do marido não podia ser obtido através da masturbação e a fecundação ser realizada sem qualquer contato sexual. Sobre a questão, D. Ivo Lorscheider afirmou: "Todas essas experiências de se fazer nenês artificiais, bebês de proveta, são condenáveis. Isso vai ter uma repercussão terrível sobre a humanidade, porque toda procriação tem como fundamento o amor entre a esposa e o esposo. Quando o amor não existe mais, qual o significado dessa criança?".

Nesse sentido, a Igreja coloca a questão do amor, do sexo e da reprodução dentro de sua lógica dogmática: de que a união do homem e da mulher, através do matrimônio, tem como objetivo único a reprodução, não importando os equívocos da natureza e a satisfação do casal. O cardeal Joseph Ratzinger, a respeito do documento "O pecado maternal", divulgado pela Santa Sé, ao ser questionado sobre como ficaria o casal que pretendendo ter filhos não os pudesse ter, por algum problema de esterilidade, respondeu: "As pessoas nessas condições devem se resignar com a sorte".

A respeito da questão, as palavras do padre Guareschi encerram a polêmica quando coloca o amor e a realização do ser humano, inclusive dentro dos princípios cristãos, acima dos dogmas estabelecidos pela Sagrada Congregação para a doutrina da Fé.

"O princípio que dá sentido à família é que ela, à semelhança da Trindade (...), procura a realização e complementação mútua de dois ou mais seres, através do amor. (...) Costuma-se dizer que os filhos são fruto deste amor. Se formos aplicar essas reflexões ao problema da inseminação artificial (in vitro) poderíamos dizer que essa ação, quando contém em si esse princípio fundamental de amor, realização e complementação mútua, se coloca muito bem dentro dos princípios cristãos. A experiência nos mostra que casais chegam a gastar fortunas, fazem sacrifícios ingentes para poderem ter um filho que vai ser o fruto de seu amor. Pode-se reduzir o amor à relação sexual normal? Não poderiam existir outros caminhos para que eles cheguem à realização e complementação de suas vidas, através do amor?".

Finalmente, a Igreja Protestante apresenta um pensamento mais liberal a respeito das técnicas de reprodução assistida (RA). O pastor André Dumas assim manifestou-se sobre o assunto: "Eu sou favorável a inseminação artificial humana, mesmo com esperma de doador, pois é uma possibilidade obtida pela ciência, de superar a esterilidade, mas ela deve ser praticada com a concordância do marido e da mulher. ( ... ) Atualmente, intervém-se, cada vez mais, nos processos biológicos. A natureza é um mito. É legítimo para o homem intervir nos processos da natureza. O problema da doação de esperma deve ser considerado como um problema de transplante, no plano da doação de órgãos. A semente deve ser dessacralizada. Evidentemente, a genética representa um papel na personalidade da criança, mas a cultura e a educação também".

Portanto, o determinismo biológico da reprodução e a satisfação do casal com a chegada de um filho justifica plenamente a utilização das técnicas de reprodução assistida. A procura do casal em corrigir uma imperfeição da natureza encontra na ciência a solução dos seus problemas. É justo negar esse direito ao Homem? Não é possível concordar com o cardeal Joseph Ratzinger quando afirma que as pessoas que não podem conceber um filho devem resignar-se com a sorte.

Por fim, não seria justificável o enorme esforço da humanidade em desenvolver o conhecimento científico se não fosse para colocá-lo a serviço do Homem. Não podemos, por dogmas ou crenças religiosas, retornar ao primitivismo da humanidade. Se a medicina pode intervir sobre a reprodução humana, dentro de princípios morais e éticos perfeitamente estabelecidos, porque impedir essa intervenção? É perfeitamente legítima a procura do homem pela sua realização e satisfação plenas. E a ciência, colocada à sua disposição, deve ser um instrumento dessa realização.

Problemas éticos envolvidos, seus conflitos

A medicina, desde tempos imemoriais, sempre exigiu um debate permanente sobre as questões éticas que envolvem sua prática e o desenvolvimento de novos conhecimentos. O marco inicial, sem dúvida, foi fixado quando Hipócrates, em 460 A.C., estabeleceu os primeiros postulados éticos da medicina _ que atravessaram séculos, chegando ao terceiro milênio como uma referência indelével que tem norteado a medicina até os dias atuais.

A curiosidade científica e a busca incansável de novas descobertas nas ciências da saúde sempre preocupou a humanidade. Daí, a necessidade de estabelecer limites precisos no desenvolvimento da ciência biomédica. O conhecimento biomé-dico, acumulado ao longo do tempo, buscou essencialmente o benefício da espécie humana. No entanto, em nome desse desenvolvimento, regras básicas de comportamento ético foram desrespeitadas. Cabe à sociedade, portanto, controlar a ciência, evitando desvios.

O desenvolvimento do conhecimento baseou-se durante séculos no empirismo e na observação pura e simples das manifestações naturais e biológicas. Não havia, à época, conhecimentos suficientes que dessem suporte científico para sua comprovação. Da mesma forma, não existia uma reflexão sobre as questões éticas desse desenvolvimento empírico. A partir do momento em que o desenvolvimento científico retirou a ciência do empirismo, a humanidade passou a refletir com mais profundidade sobre as questões éticas que envolvem seu desenvolvimento e sua aplicabilidade sobre os seres humanos.

Mesmo nos tempos atuais, onde a sociedade exerce um papel controlador mais efetivo, o desenvolvimento científico muitas vezes encobre violações de princípios éticos, e não raro humanitários, em nome da high-tech na ciência biomédica. No entanto, cada vez mais cresce a discussão sobre a questão e a Bioética _ a qual busca estabelecer com a sociedade, em todo o mundo, um diálogo conseqüente _ propicia uma vigilância mais efetiva do rápido e contundente avanço científico e tecnológico.

Desde sua gênese, a humanidade sempre demonstrou grande preocupação com a fecundidade. Envolvendo aspectos religiosos, morais, éticos e culturais a humanidade debateu-se durante séculos sobre o problema. Principalmente por encerrar questões delicadas como a sexualidade, o matrimônio e a reprodução esse tema ainda hoje permanece, e com maior ênfase, como um dos dilemas éticos mais atuais da humanidade. A primordial discussão sobre a sacralidade do início da vida e da concepção sempre colocou em permanente debate a questão da reprodução humana.

Desde as mais remotas épocas sempre coube à mulher a responsabilidade pela concepção _ inclusive pela anticoncepção. A ela caberia receber a semente do homem e procriar. A infertilidade feminina era vista como uma grave deformidade biológica _ e também considerada uma repreensão divina, já que a mulher não era merecedora da benção da procriação.

Durante séculos, não admitiu-se a esterilidade masculina. A esterilidade ou a infertilidade sempre colocou a mulher em uma condição de inferioridade, submetendo-a a forte discriminação. Ao contrário, a fertilidade e a chegada de um filho sempre foi festejada e abençoada. A união entre um homem e uma mulher sempre enseja uma pergunta: quando chega o bebê?

É a pressão da sociedade sobre o casal e principalmente sobre a mulher, a respeito da função reprodutiva. A esterilidade ou infertilidade, vista como um "defeito" biológico, leva à discriminação que alimenta o sentimento de inferioridade e de culpa na mulher.

A família, como tradicionalmente conceituada, constitui-se da união de um homem e de uma mulher e de sua prole. A ausência de filhos fragiliza a estrutura familiar e influi na relação entre os cônjuges. É comum as separações de casais que não podem conceber. E cada um dos participantes procura acreditar que o "defeito" é do outro, em uma busca desesperada para livrar-se da maldição da esterilidade.

Segundo Cabau e Senarclens, é grande o número de fatores subconscientes que determina o desejo por um filho. O filho sempre existiu, de uma forma ou de outra, nas fantasias do homem e da mulher. Por isso mesmo torna-se insignificante determinar se a infertilidade é causada pelo homem ou pela mulher; a descoberta atinge a ambos e afeta o equilíbrio do casal. Ainda segundo os autores: "Este é o primeiro sentimento expresso numa sociedade onde a anticoncepção é ampla, a fertilidade é aceita como certa e o único problema é controlá-la. Para aqueles que têm o hábito de vencer todos os obstáculos, essa situação, na qual a sua vontade está impedida, pode parecer intolerável". E esta intolerabilidade, segundo estudos realizados pelos cientistas com base nas pesquisas de Menning, se manifesta em progressiva ascensão que passa por seis fases consecutivas: recusa, raiva, sensação de isolamento, culpa, obsessão, angústia e depressão. Sem dúvida, o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida trouxe uma possibilidade real aos casais com problemas de infertilidade, auxiliando-os a realizar um dos mais primitivos desejos humanos: a reprodução. A partir do conhecimento adquirido com a experimentação animal e a evolução do conhecimento científico na área reprodutiva humana, evoluiu-se da inseminação artificial (IA) às atuais técnicas de fertilização in vitro com transferência de embrião (FIV). No entanto, ao lado dos benefícios trazidos com o desenvolvimento dessas técnicas, surgiram preocupações e questionamentos de ordem técnica, moral, religiosa, jurídica e, principalmente, de natureza ética.

Uma das questões amplamente discutidas e que encerra um forte componente social diz respeito ao direito de um casal investir importantes recursos financeiros e submeter-se a riscos, à sua própria vida e à de sua descendência, para ter um filho. À sua volta, legiões de crianças abandonadas ou vivendo em miséria absoluta. Não seria mais ética e socialmente mais justa a adoção? A adoção seria mais justa do ponto de vista social, principalmente em um país como o Brasil. A convivência com uma criança, mesmo que não contenha a carga genética de um ou de ambos os cônjuges, quando integrada ao convívio familiar, desenvolve rapidamente a afetividade.

No entanto, a autodeterminação de cada indivíduo deve ser respeitada, pois cada um tem o direito de ver satisfeitas as suas aspirações interiores. E se a ciência dispõe dos meios que permitam essa satisfação, qual o impedimento de coloca-lá à disposição daqueles que a necessitam? Ou seria um egoísmo exacerbado, por parte da mulher ou do casal, a procura de um filho que contenha seus componentes genéticos? Ou o desejo de vivenciar a fantástica experiência da gravidez e do parto? Não acreditamos que seja esse o sentimento envolvido. O sentimento, único que envolve essa procura por um filho é sem dúvida o amor, de tal intensidade que o casal renuncia à intimidade da concepção e à sua privacidade quando admite a participação de um terceiro, nos casos de fertilização heteróloga.

No mundo inteiro, os países que dominam as técnicas de reprodução assistida têm procurado criar protocolos e normas que impeçam desvios e distorções no desenvolvimento dessa nova tecnologia. A velocidade da evolução do conhecimento na área da reprodução humana tem exigido das sociedades e dos governos envolvidos uma permanente vigilância a respeito da questão.

Após o nascimento de Louise Brown, o primeiro bebê de proveta, em 1978, na Inglaterra, o mundo, perplexo, viu-se diante de um dilema ético até então só existente na ficção científica. A realidade, inesperada, provocou uma reação imediata dos países desenvolvidos. Os Estados Unidos criaram as Comissões Nacionais Governamentais. A Inglaterra constituiu a Comissão Warnock. A Suécia criou comissões especializadas sobre o assunto. A França, o Comitê Consultivo Nacional de Ética para as Ciências da Vida e da Saúde. Na Itália, o Comitê Nacional de Bioética, em dezembro de 1994, excluiu das possibilidades de utilização das técnicas de reprodução assistida a doação de óvulos e espermatozóides em mulheres fora da idade reprodutiva, em casais do mesmo sexo, em mulher solteira, após morte de um dos cônjuges e em casais que não proporcionem garantias adequadas de estabilidade afetiva para criar e educar uma criança.

No mesmo sentido, o Colégio Médico Italiano interviu ampliando a proibição de todas as formas de gravidez de substituição, em mulheres em menopausa não-precoce, sob inspiração racial ou socioeconômica e a exploração comercial, publicitária ou industrial de gametas, embriões ou tecidos embrionários. Enfim, os países industrializados procuraram intervir sobre o problema. Não para impedir o desenvolvimento e o progresso científico dessa nova tecnologia reprodutiva, mas para estabelecer limites éticos e morais para sua utilização.

Na América Latina e nos países em desenvolvimento, praticamente não há regulamentação ou legislação sobre o assunto. Porém, com a crescente preocupação mundial a respeito dessa nova tecnologia, que desenvolve-se numa velocidade espantosa, a tendência de todos os países que já dominam as técnicas de RA é regulamentar e controlar suas aplicações sobre o ser humano. Regulamentação essa que tem como objetivo estabelecer os limites de sua utilização e nunca obstaculizar ou impedir seu desenvolvimento científico. Da mesma forma, busca delimitar seu campo de aplicação para não cair no terreno perigoso da técnica pela técnica, desumanizando e artificializando o processo da reprodução humana.

No Brasil, o domínio das técnicas de FIV teve início em 1984, quando nasceu a primeira criança através de fertilização in vitro com transferência embrionária. Até o momento, não há nenhuma regulamentação legislativa sobre o assunto. Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 3.638, de 1993, de autoria do deputado Luiz Moreira, que regulamenta a utilização das técnicas de RA.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), antecipando-se a qualquer iniciativa governamental ou legislativa, regulamentou, com uma visão mais atual e liberal, em 1992, a utilização das técnicas de RA através da Resolução CFM n° 1.358/92, a qual estabelece os critérios técnicos e éticos a serem seguidos por todos os médicos brasileiros que utilizam o procedimento. É importante registrar dois fatos. Primeiro, o projeto de lei ora em tramitação no Congresso Nacional contempla, em sua íntegra, a Resolução CFM n° 1.358/92. Segundo, preocupado com sua atualização, após cinco anos da edição, o CFM promoveu a sua revisão. Não foi necessária nenhuma alteração, visto manter-se atualizada, cientifica e eticamente, com o desenvolvimento alcançado pelas referidas técnicas.

Principais conflitos éticos envolvidos na Resolução CFM

nº 1.358/92

1. Necessidade de vínculo matri-

monial

Em geral, aceita-se o casamento como a instituição que melhor representa a família. Entretanto, deve-se reconhecer que o casamento não constitui aval para a estabilidade conjugal, nem garante a harmonia familiar necessária para o desenvolvimento de uma criança. Desta forma, deve-se considerar, para efeito de aplicação das técnicas de RA, a estabilidade e a afetividade do casal, que será o suporte emocional que permitirá o crescimento saudável da criança, e não a formalidade dessa união. Até porque na América Latina, e particularmente no Brasil, é freqüente a união informal de casais, o que não exclui a existência de uma família. Assim sendo, deve-se fazer a distinção entre família e casamento.

Não existe impedimento legal para que casais unidos informalmente venham a constituir sua descendência. Ao contrário, a Constituição Brasileira garante, em seu artigo 226, parágrafo 3°: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento." Em seu parágrafo 4° lê-se: "Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes." Neste particular a lei procurou regular a natureza civil da descendência, dando-lhe a proteção do Estado.

Portanto, exigir o vínculo matrimonial para os casais que necessitam do uso dessa metodologia reprodutiva constitui, sem dúvida, além de uma discriminação inaceitável, uma violação constitucional, muito embora países como a Áustria, Egito, Japão, Coréia, Líbano, Singapura e África do Sul exigam a união formal do casal para a realização das técnicas de reprodução assistida. A Resolução CFM n° 1.358/92, no entanto, exige para a sua aplicação a concordância livre e consciente em documento de consentimento informado, e a anuência formal do cônjuge ou companheiro.

Há, também, o entendimento de que as técnicas de RA não devam ser utilizadas como uma alternativa de substituição da reprodução natural através do ato sexual. As técnicas de RA são aceitáveis apenas com o objetivo de corrigir os problemas de infertilidade ou esterilidade do homem, da mulher ou do casal. Do mesmo modo, a referida resolução proíbe a utilização de técnicas de RA com o objetivo de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças genéticas ligadas ao sexo. Proíbe a experimentação sobre os embriões obtidos e a redução embrionária em casos de gravidez múltipla.

2. Doação de gametas

A doação de gametas está indicada nos casos em que um ou ambos os componentes do casal não possuem gametas, ou nos casos em que uma doença genética pode ser transmitida com alta freqüência para seus descendentes. A paternidade, a maternidade e a família podem ser estabelecidas, legal e eticamente, sem nenhum vínculo genético. O exemplo maior para essa afirmação é o instituto da adoção, garantida pela lei e pela Constituição Federal.

A Resolução CFM n° 1.358/92 estabelece a gratuidade da doação e o anonimato dos doadores e receptores de gametas e pré-embriões. Estabelece, ainda, que em situações especiais ditadas por necessidade médica as informações clínicas do doador podem ser fornecidas, resguardando-se, no entanto, sua identidade. Para tanto, os centros ou serviços responsáveis pela doação devem manter, permanentemente, o registro de dados clínicos de caráter geral, características fenotípi-cas e amostragem de material celular dos doadores. Estabelece, ainda, que a escolha dos doadores é de inteira responsabilidade da unidade prestadora dos serviços, devendo garantir a maior semelhança fenotípica e imunoló-gica com a receptora.

A manutenção do anonimato entre doadores e receptores é de fundamental importância no sentido de evitar-se, no futuro, complexas situações emocionais e legais entre doadores e receptores, com repercussões no desenvolvimento psicológico das crianças nascidas através desse procedimento. Sob essa ótica, alguns especialistas acreditam que a manutenção do anonimato torna possível aos pais exercerem uma maior influência de suas identidades sobre os filhos. Entretanto, outros afirmam que as crianças com desconhecimento de sua origem genética poderiam apresentar incompleta percepção de sua identidade, com graves repercussões psicológicas. Segundo Wood (1994), isso é muito difícil de provar, estabelecendo uma relação de causa e efeito.
Por outro lado, em diversos países onde o anonimato dos doadores não é obrigatório, persistem dúvidas quanto a revelar ou não a origem genética das crianças. Na Austrália, Munro e cols. (1992) avaliaram 36 casais e as crianças nascidas através de um programa de doação de oócitos, verificando que 37,5% dos casais que obtiveram filhos por doação anônima e 56% dos casais com filhos de doadores conhecidos iriam revelar para os filhos, no futuro, sua origem. Nessa mesma pesquisa, 37,5% dos casais com doação anônima e 33% com doação conhecida não revelariam sua origem através de procedimentos de reprodução assistida. Apenas 19% dos casais revelariam a utilização do procedimento se isso fosse justificável do ponto de vista médico. Não houve consenso em 6% dos casais com doação anônima e em 11% dos com doação conhecida quanto a revelar ou não a identidade dos doadores,.

Da mesma forma, há divergências entre os especialistas em reprodução humana sobre o aconselhamento aos pais em revelar para a criança sua origem, identificando o doador. Na literatura atual, os dados são insuficientes para uma análise precisa das repercussões sobre o desenvolvimento psicológico de crianças que conhecem, e foram criadas, em estreita relação com seus doadores genéticos.

A perda do anonimato preconizada por alguns autores poderia criar situações anômalas, onde os doadores de gametas poderiam ser um dos filhos do casal infértil (filha doando óvulos para a mãe, por exemplo), aumentando, sobremaneira, os riscos de problemas emocionais para os envolvidos. A ocorrência de complicações obstétricas ou o nascimento de crianças com incapacidades físicas ou mentais, morte da receptora ou do concepto, poderiam criar para os doadores importantes problemas psicológicos, como sentimento de culpa e de perda. Independentemente da idade cronológica do doador, como nem sempre é possível determinar com precisão sua capacidade de suportar ou superar tensões emocionais, a doação de gametas por filhos de casal infértil deveria ser considerada de alto risco para o desenvolvimento de problemas psíquicos, sendo fundamental evitar esse tipo de doação.

A idade da receptora, nos casos de FIV pós-menopausa, representa um problema especial que deve ser considerado. Define-se menopausa como uma parte do ciclo natural da vida da mulher. Portanto, aquelas que desejam expressar sua maternidade nessa fase da vida, poderiam fazê-lo desde que apresentem condições clínicas adequadas. O estabelecimento de um limite etário para a gravidez na pós-menopausa é assunto polêmico e controverso.

A contaminação da discussão por conceitos e preconceitos, pessoais ou coletivos, impede uma definição mais objetiva da questão. Além, evidentemente, do perigo de introduzir-se, camuflado sob mantos diversos, o preconceito contra a mulher. Não há nenhuma discussão ou restrição etária para a reprodução masculina. É claro que antes havia uma restrição natural para a reprodução feminina: a própria menopausa. Hoje, a ciência permite contornar com relativa segurança esse obstáculo natural. Como, então, estabelecer limite de idade para a reprodução feminina? Se a ciência deve estar a serviço do ser humano na busca de sua satisfação plena, ela deve ser um instrumento dessa satisfação, respeitados os limites da ética, da segurança e do bom-senso.

Finalmente, a doação de espermatozóides não é permitida para sua utilização nos procedimentos de FIV na Áustria, Egito, Japão, Líbano, Noruega e Suécia. No mesmo sentido, a doação de óvulos é proibida na Áustria, Egito, Japão, Alemanha, Noruega e Suécia. No Líbano, a doação de óvulos é permitida, desde que usada pelo próprio marido da doadora para uma outra esposa, já que a tradição e a legislação permitem ao homem possuir mais de uma esposa. Entretanto, a doação de espermatozóides é proibida em qualquer hipótese.

3. Número de embriões transfe-

ridos

Não existe uniformidade entre as normas existentes nos diversos países sobre o número ideal de embriões a serem transferidos. Em Singapura, por exemplo, admite-se a transferência de quatro embriões em mulheres acima de 35 anos, com dois insucessos em procedimentos anteriores. O número ideal considerado na Itália é de três embriões transferidos, porém admite-se quatro em mulheres acima de 36 anos. Na Coréia do Sul, transfere-se entre quatro e seis pré-embriões, enquanto na Grécia o número varia entre cinco e sete.

No Brasil, a Resolução CFM n° 1.358/92 limitou a transferência de até quatro embriões por cada procedimento, com o intuito de impedir a transferência de um número cada vez maior de embriões visando obter sucesso de gravidez, porém aumentando ainda mais os riscos existentes de gestações múltiplas.

Atualmente, a tendência mundial é transferir apenas dois embriões, fato que evitaria a obtenção de gestações triplas ou de número superior. Isso deve-se, com certeza, ao aprimoramento das técnicas de FIV, com resultados mais satisfatórios na obtenção de gravidez por tentativa de transferência.

4. Criopreservação de gametas e

embriões

O estágio atual do desenvolvimento da criobiologia permite a preservação de células por tempo prolongado, mantendo suas propriedades biológicas após o descongelamento. A implantação de um programa de criopreservação de embriões em um centro de reprodução assistida traz vantagens, porém alguns problemas podem resultar da estocagem de embriões humanos. Uma das principais vantagens seria o aumento das possibilidades de gestação por um único ciclo de punção folicular, determinada pela transferência dos embriões excedentes criopreservados, após transferência a fresco. Ao mesmo tempo, permite a diminuição do número de embriões transferidos, minimizando o grave problema das gestações múltiplas.

Embora a criopreservação de embriões excedentes constitua rotina em diversos centros ou unidades de reprodução humana, este procedimento deve ser considerado de risco pelos problemas éticos, legais e econômicos que encerra. No Brasil, a Resolução CFM n° 1.358/92 regulamenta que os embriões excedentes obtidos através de FIV, após transferência a fresco, não podem ser descartados. Autoriza sua criopreservação, para posterior transferência em caso de insucesso, desejo da mulher ou do casal de ter uma nova gravidez ou mesmo para doação. Como não é possível determinar quantos óvulos serão fecundados em cada ciclo de punção folicular, e considerando-se o fato de a transferência estar limitada a quatro embriões, a solução foi a criopreservação, devendo o casal conhecer o número de embriões a ser congelados e expressar, por escrito, o destino dos mesmos em caso de divórcio, doença grave ou morte de um ou ambos os membros do casal.

O problema é agravado por fatores adicionais como o alto índice de casais que abandonam o tratamento devido a diversos problemas, inclusive econômicos, após uma ou duas falhas no programa de FIV, ou porque consideram ideal o número de filhos obtidos após o emprego das técnicas de reprodução assistida. Outro fator agravante para o problema é praticamente a ausência de casais interessados em receber esses embriões em doação, pois não haverá nenhum vínculo genético entre eles. Nesses casos, a decisão do casal geralmente recai pela adoção de uma criança.

A mesma resolução proíbe a utilização de embriões humanos para fins de pesquisa, permitindo a intervenção com fins de diagnóstico ou de tratamento de doenças genéticas ou hereditárias quando houver garantias reais de sucesso da intervenção, sendo obrigatório o consentimento informado do casal sobre todos os procedimentos a serem utilizados.

Por fim, limita a 14 dias após a fertilização o tempo máximo de desenvolvimento embrionário in vitro. A referida resolução adotou a tendência mundial de não permitir o desenvolvimento in vitro além desse prazo, quando começa, então, a formação do tubo neural, dando início à formação do sistema nervoso central.

5. Diagnóstico genético in vitro

O diagnóstico genético realizado durante a fase embrionária in vitro permite identificar alterações cromossômicas nos embriões antes de os mesmos serem transferidos para a cavidade uterina. O avanço tecnológico permite a realização do procedimento com segurança para o desenvolvimento da futura criança. É importante destacar que, nesta fase de desenvolvimento embrionário, cada blastômero pode originar um novo embrião.

Atualmente, em todo o mundo, o diagnóstico genético pré-implantação uterina é ainda considerado um procedimento experimental. Desta forma, mesmo constituindo-se uma terapêutica genética, deve ser considerado de caráter experimental, devendo permanecer como um procedimento de investigação.

A Resolução CFM n° 1.358/92 regula que as técnicas de RA podem ser utilizadas no diagnóstico e tratamento de doenças hereditárias e genéticas, quando perfeitamente indicadas e com suficientes garantias de sucesso. Fica evidente que a preocupação do legislador foi impedir a manipulação e a experimentação embrionária sem a necessária objetividade científica, evitando-se desvios éticos e bloqueando-se a especulação científica. A única finalidade admitida é a avaliação da viabilidade embrionária ou o diagnóstico e tratamento de doenças genéticas e/ou hereditárias de alta prevalência.

6. A gravidez de substituição

O desenvolvimento da medicina reprodutiva criou uma nova realidade ao permitir que casais, antes sem possibilidades de constituir sua prole com seus elementos genéticos, pudessem satisfazer esse desejo natural do ser humano. A gravidez de substituição, no entanto, ao permitir essa possibilidade, criou perplexidade e suscitou um grande debate sobre as fronteiras da ética e do progresso científico. Uma das questões colocadas nesse debate diz respeito ao poder, ou ao limite que deve ser imposto ao homem, de interferir nos processos biológicos da reprodução humana. A interposição de um terceiro elemento, visível e conhecido, na vida afetiva e familiar do casal introduz na questão, sem dúvida, um forte componente emocional, ético e jurídico.
Com o domínio do homem sobre a reprodução humana e a manipulação genética através da bioengenharia, assiste-se a uma crescente demanda por regulamentações que garantam a proteção dos valores fundamentais da pessoa; no entanto, essa proteção tem se mostrado totalmente inadequada e insuficiente. No mesmo sentido, surge uma significativa preocupação, mundial, com os desafios jurídicos que o tema encerra. São muitas as questões colocadas aos juristas: desde a definição de um estatuto do embrião até a proteção de bens essenciais como a unidade familiar, a salvaguarda do valor da procriação e a licitude dos meios e dos fins que caracterizam suas aplicações no campo científico.

As legislações de diversos países, em um primeiro momento, adquiriram uma certa uniformidade de orientação no sentido de considerar de nulidade absoluta os contratos sobre maternidade de substituição, portanto sem efeitos jurídicos. A intenção dos legisladores foi a de evitar e prevenir a exploração comercial, inclusive estabelecendo sanções penais à publicidade, incitação e intermediação levada a cabo por pessoas ou instituições.

A primeira tentativa de estabelecer uma legislação sobre o assunto, proposta pelos Estados Unidos, adotou como requisito principal a presença de vínculo genético da criança com um dos componentes do casal, de tal maneira que se encontre na família uma referência genética segura. Seguindo o mesmo princípio, o Reino Unido admitiu em sua legislação a maternidade de substituição, no entanto incorporou a intervenção da autoridade judicial para controlar os requisitos do contrato consensual e a legitimação do recém-nascido.

Na Itália, a Câmara de Deputados comprometeu o Governo a corroborar, com o necessário apoio legislativo, as funções do Comitê Nacional para a Bioética, afirmando o princípio da não-comercialização do corpo humano e de seus produtos, excluindo toda forma de apropriação privada, bem como empreender iniciativas legislativas que considerem a orientação comunitária e o compromisso da Itália com o Projeto Genoma Humano, com referência particular às novas biotecnologias e métodos de fecundação humana assistida.

Toda essa preocupação demonstra a importância e complexidade que o assunto encerra. Os limites entre a autodeterminação da pessoa e a sua plena satisfação, o desenvolvimento científico na área da reprodução assistida e a ética da intervenção nos processos biológicos da reprodução humana, cada vez tornam-se mais estreitos, exigindo uma pronta resposta social para contê-los.

A intervenção do homem nos processos reprodutivos, rompendo com as relações biológicas entre os seres humanos, exige uma permanente e severa vigilância no sentido de impedir a generalização e a banalização da procriação tecnológica. A rápida transferência de conhecimentos, associada ao fantástico desenvolvimento da biotecnologia, leva à imperiosa necessidade de elaboração de legislações que controlem e contenham esse desenvolvimento, colocando-o dentro de um contexto ético, moral e jurídico que garanta a autodeterminação do indivíduo _ porém assegurando o respeito dos valores fundamentais da pessoa humana, a proteção do embrião e a garantia de um desenvolvimento saudável da criança.

No Brasil, a Resolução CFM n° 1.358/92 permite a utilização da gravidez de substituição, desde que exista impedimento físico ou clínico para que a mulher, doadora genética, possa levar a termo uma gravidez. Essa condição impede a vulgarização do procedimento, restringindo sua utilização a indicações médicas absolutas. Em conformidade com a tendência internacional, restringe a receptora biológica ao ambiente familiar, permitindo que a gestação aconteça dentro da família, criando os laços de afetividade necessários para o desenvolvimento saudável da futura criança. No mesmo sentido, impede qualquer caráter lucrativo ou comercial na relação estabelecida.

Mesmo consciente das possíveis complicações jurídicas que possam futuramente advir de utilização desses procedimentos, é importante que se estenda o direito da utilização das referidas técnicas a todos os casais com distúrbios da reprodução. De outra forma, seria uma imperdoável discriminação à mulher portadora de uma incapacidade física ou clínica que a impeça de desenvolver uma gravidez. A inviolabilidade da autodeterminação do indivíduo deve ser respeitada, desde que a tecnologia disponível permita atuar em seu benefício e que princípios morais e éticos sejam preservados. A preocupação basilar deve ser focada na preservação dos direitos do embrião e da criança, garantindo-lhes um desenvolvimento saudável dentro da família.

A mãe genética, doadora, e a mãe biológica, receptora, devem estar ligadas por laços familiares e de afetividade para que a criança nascida dessa relação encontre o ambiente propício para um desenvolvimento biopsíquico-social desejável. A participação de um terceiro elemento, no caso a mãe biológica, criando um perigoso triângulo reprodutivo, fica bastante minimizada quando a gravidez ocorre dentro do ambiente familiar. Essa relação, quando estabelecida através de interesses econômicos, anula a afetividade e rompe o vínculo familiar, com graves repercussões para o desenvolvimento psíquico da criança. As conseqüências jurídicas, psicológicas e éticas advindas dessa relação são perfeitamente previsíveis. A afetividade passa a ser estabelecida entre a mãe substituta, biológica, e o filho que geneticamente não lhe pertence. A relação econômica, fria e impessoal, não encerra o amor e o sentimento humanístico da doação.

Finalmente, a intervenção na reprodução humana através da ciência e da tecnologia é ética e moralmente admissível, desde que respeite os valores fundamentais do ser humano, a unidade familiar, a salvaguarda dos valores da reprodução, a licitude dos meios e dos fins e a utilização ética desses conhecimentos em benefício da humanidade.

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